11 julho 2007

O dia em que o professor quase virou suco nas terras do Shao Lin genial

Seguindo as aventuras d"o professor pobre", que já foram publicadas mais abaixo, as crônicas da época em que eu era professor na Faculdade Objetivo para a disciplina de Botânica aplicada a Farmácia, em 1999, e meu contracheque eram ridículos 200 reais e os alunos pagavam cada 714 reais e a sala tinha 30 alunos. Ok, chega! Vamos à crônica. Qualquer coincidência é mera coisificação merística. (Ah, os erros são propositais, pois o professor não tinha muito dinheiro para investir em alimentação e cultura).

O dia em que o professor quase virou suco nas terras do Shao Lin genial*
J Philippe Bucher

Assim não dá. Nem fumando cigarro de tarja preta. A gente estuda uns vinte anos, vai se especializando, se especializa, e vai até se especializando, trabalha o dia inteirinho, se prepara para dar a aula, pra chegar na sala de aula e... só tem dois alunos. A turma tem trinta e oito, a aula começa seis e meia em ponto mas é sempre assim, vão chegando a prestação. O pior é que muitos trabalham durante o dia e muitos só chegam atrasados. Mas a gente caça o que fazer. Dá tempo pra escrever no quadro, e, até rever de novo a matéria, ver se a letra ficou boa, dar uns retoques aqui, ali, ajeita acolá e coisa e tal, e ainda bater um papinho com os estudantes. Falar das novi, todos agora empolgadíssimos. Hoje é dia até de prática. Hoje só não, todos os dias tem prática. Quer dizer, prática na teoria. Prática. Dia de sofrimento. Farto material com muita criatividade de troca: o de ontem você usa hoje, o de anteontem, que é o mesmo de ontem, você usa amanhã. Prática na teoria. Essa é ótima. Mas vamos lecionar.
Começam a surgir alguns alunos. Aqui, ali, chegou mais um. Mais dois. Saiu mais três. Foram beber água e passar na direção e também conferir a nota do professor tal. Justíssimo, afinal o intervalo foi feito para fazer outras coisas. Olha, acho que tá bom, chegou mais uns, e, agora dá pra começar a aula. Viro para o quadro, e tempos modernos Bamerindus, ligo a caneta laser, ajustando para o modo menos barulhento, sei lá né, vai que pega fogo. Começo a falar. Vacúolos, mitocôndrias, parênquima, câmbio vascular. Uma aluna me interrompe. Fico lisonjeado. Vão perguntar sobre a matéria, primeira dúvida da semana.—“Professor!” “Tem gente te chamando na porta.” Nada de dúvida. Alguém me chamando. Quem seria. Caras? Ricos e famosos? Manchete? Veja? Fui ver o que era. Era um funcionário, a direção me chamava para depois, na hora do intervalo, um bate-papo. Só porque sou pobre. Logo eu, que não fiz nada. Talvez um lapso meu. Colapso total. Fiquei com medo, tenho problema de coração, pressão alta, coronária, hipertensão, não posso assim, de repente com emoções fortes. Não deu pra comprar o remédio há mais de um mês. O remédio era ir lá. Logo na hora dos biscoitos da sala dos professores.
Muitas palavras científicas e cochilos ou fofocas depois, e jack sou brasileiro fui lá, na tal da direção. Era indo logo ali, bem ali, ali pra lá. O que será que queriam comigo? A Direção? Logo a direção? Certamente era o novo Diretor que queria alguma coisa. Falavam que ele era o filho da dona Canô, a irmã do Neco, vizinhos do seu Zezé, aquele que cunhava o alforde da infantaria, bem ele que tinha aquela filha bonita, a Jacinta. Pois bem, feita a apresentação, no meio do caminho fui sentindo cheiro de macaco morto a tapa.
Cheguei. Sentei. Na ante-sala é claro, com as sempre simpáticas secretárias. O diretor-geral é muito ocupado sabem. Parece que agora é um novo. Diziam as más línguas que o anterior ganhava rios de dinheiro. Saiu um moço, entrou outro, me falaram para esperar um pouco. Agora sim, pode entrar. Nossa, que finesse de sala. Parecia ainda mais bonita que da última vez. Entrei pinga, saí Whisky. Sentei. Estava mexendo no computador, num tal de orçamento. Tinha esquecido que estava com uma vontade danada de ir ao banheiro, e, não agüentei. —“Será que... ...daria pra eu ir no banheiro agora...?” —“Claro, por aquela porta.”, apontando, sem virar para mim, num murmúrio quase monossilábico. Fui. Aliás, que chiquerrésimo, uma sala de escritório com um banheiro dentro. Quero dizer, acoplado, claro. Nunca poderia ter percebido, parecia um armário embutido. Fui, e só fiz isto, não aquilo. Puxa vida, estava apertado. Essa época de frio e ainda mais de noite, a gente tem mais vontade de ir mais no banheiro. Apertei a descarga. Droga, não funcionou. Essas coisas só acontecem comigo. Só porque sou pobre. A marca da descarga, suíça javanesa legítima, tinha que não funcionar justamente comigo. Tudo bem que só fiz isso, não aquilo, mas era chato do mesmo jeito. Pensei sobre a reclamação das mulheres que depois que se casam reclamam dos maridos que nunca dão a descarga direito. Baixei a tampa vagarosamente e girei a torneira dourada ao máximo, quem sabe substituía o barulho da tampa.
Voltei para meu lugar. Parece que ele não percebeu nada. O diretor continuava frente ao computador, mais ainda ainda mais muito mais inerte com o tal do orçamento. Passei a olhar em volta da sala. Havia muitos quadros bonitos. Um me chamou a atenção, um pôster branco e preto muito bonito do Sebastião Salgado. Sebastião Salgado? Não menino, do Miró. Preciso trocar as lentes, fazia quatro anos a última visita ao oculista, o convênio acabou.
Tinha também uma bela gardênia no parapeito da janela. Lembrei de uma história de um professor antigo da escola, que dizia que um sujeito havia colocado em seu jardim o seguinte aviso, com o intuito de protegê-las, “Cuidado! Hidrangias no jardim”, acabando por espantar pessoas indesejáveis. O incauto ladrão poderia pensar sobre o mais terrível animal correndo-lhe atrás, sem imaginar que se tratava de indefesas gardênias referidas cientificamente.
Descompressurizado que estava, de repente quase que pulando da cadeira, tomei um susto, o diretor virou-se para mim. Olhou bem fundo no branco dos meus olhos, e gritou: —“JOÃO, TRAGA CÁ UM COPO DE ÁGUA PRA NÓS DOIS." Estremeci, pensei. Na última, e única vez que conversei com o diretor anterior, foi muito bom. Apresentou-se a mim, apresentou mais o superintendente, o tal que tinha uma mesa ao lado, hoje nem estava lá, mais um intendente das quantas que não me lembro, outro lá dos quintos e disse que estava muito feliz de ter mais um professor na área de biologia na faculdade, que a outra professora que estava substituindo era meio estressada, que sua esposa também era formada em biologia, que era uma área muito bonita, muito promissora, o Brasil é o país do futuro, viva o país. Ainda falou de coisas muito bonitas, como o céu, a terra, a água e principalmente o ar, como a importante compra de umas ripas de madeira para montar as exsicatas de botânica, sem o aparelho de secar, sem o armário para guardar as plantas, sem a horta de plantas medicinais para estudo e sem lâminas de microscópio para as aulas práticas. Santa Bortolina. O que ele queria agora. O que que eu fiz. Vai ver foi o passeio científico com os alunos, que não foi quase ninguém. A porta se abriu de repente. Caras? Coroas? Ricos e famosos? Manchete? A revista Playboy? Eram as águas. —“Professor, estamos com um problema de um professor que teve que sair da faculdade e gostaríamos que você o substituísse por um tempo até que arrumemos outro, se você puder é claro.” —“Ah, sim, compreendo.” Compreendi mas não entendi. Por que entravam e saiam tantos professores na Faculdade? Olha, ali já vai um passando pela janela, com o contracheque na mão. Passou mais outro novato. O pior é que cada ano que passa, mais cursos estão se abrindo, mais turmas estão entrando, e as primeiras turmas inaugurais só se formam daqui a cinco anos, se não repetirem, nunca se sabe. Para estacionar na faculdade tem que chegar umas três da tarde. Ontem por exemplo, estacionei lá perto do cemitério e vim andando. Não entro no estacionamento reservado pela vergonha. O carro, um fusca 66, vive dando problemas. Hoje foi na manoela do câmbio, um custo pra pegar. Com todas estas mazelas, pensei muito. Pensei, repensei, trepensei, e refleti. Aceitei. Estava precisando de dinheiro, claro que, só para variar um pouquinho. Precisava preparar meu futuro, arrumando as dívidas do passado. Era bom continuar com minha carreira acadêmica, nem que meu filho nasça com cara de pastel. Um momento. Eu disse cara, não jeito.
Afinal foram anos freqüentando a mundialmente famosa, simpática e bem freqüentada pastelaria Viçosa, na rodoviária. Claro que uma vez no mês a gente se dá ao luxo de ir comprar um saboroso, único, inesquecível e nutritivo McChicken, provavelmente feito pelas mãos prendadas de uma Mcvelha. Ai que saudades da comida da vovó. O salário mensal poderia comprar vinte e oito Mchambúrgeres, com uma das Mcatendentes, no Mcsalão, após ter estacionado o carro no Mcestacionamento. Claro, sem a sobremesa, vamos cortar despesas. Com todas essas divagações ainda cheguei a falar sobre o material das aulas práticas, que estava escasso, que era preciso comprar mais, investir na educação, as aulas práticas estavam difíceis, era difícil explicar teoria sem prática, mas, disse que era complicado e essas coisas são caras, tem um custo alto, demoram pra chegar, as coisas não são bem assim, que estava sendo muito rebelde e revolucionário, muito tóchico na cabeça e me aconselhou a rezar um terço e confessar na capela da faculdade. Claro que fui no dia seguinte, com essas coisas não se brinca. O pior é que foi bem na hora que o intendente chegou na mesa da frente. Logo ele que, diziam, era primo do coronel. Morro de medo dessa gente, é melhor não facilitar. Tenho filho pra criar, ainda que sei lá quando. E depois, pegando mais uma aula, subindo de quarenta e oito para quarenta e nove aulas semanais, quem sabe poderia finalmente concretizar o velho sonho de trocar o fusca 66 por um 67, até que enfim. E assim caminha a humanidade.

Observações:
· não sei como está hoje, mas em 1999 um professor de nível superior cursando mestrado lecionando 10 horas por mês ganhava 200 reais na Faculdade Objetivo de Brasília, sendo que os alunos pagavam 714 reais de mensalidade, as salas geralmente continham mais de 35 alunos, e ainda assim tínhamos que conseguir material para aulas práticas por conta própria.
· a crônica está cheia de erros, na maioria propositais por questão de estilo de fluido de pensamento.
· “Diziam as más línguas que o antigo diretor ganhava rios de dinheiro”— Rios, era o sobrenome do antigo diretor.
· “...Shao Lin genial”, o dono de todo ensino Objetivo chama-se Digênio
· aceito crônicas sob encomendas haha

Erros propositais:
- a gente caça o que fazer.
- Saiu mais três. (saíram mais três)
- acho que tá bom (está)
- “Jack sou brasileiro”- paródia e homenagem à música de Lenine
- chiquerrésimo
- fazia quatro anos a última visita (haviam quatro...)
- O que que eu fiz. (repetição)
- a gente se dá ao luxo (nos damos ao...)
- manoela do câmbio- tecnicamente, a porca do rebite retangular que fica embaixo do cambio, para dar sustentação a manivela do eixo de rotação.

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