10 julho 2007

O Brinco

E, a continuação.

O Brinco

Foi só ela falar. Tinha um ano que eu não usava brinco. Ela disse no telefone. “Meu filho vc agora tá dando aula, precisa se vestir melhor tomar outra atitude de vida e parar com esse negócio de brinco”. Que eu realmente preciso comprar roupa é mesmo verdade. Mas, pra que ela instigou parar de usar brinco? Lá fui eu no dia seguinte com um pra repartição. Pronto. O velho redator não gostou. Sei lá, andropauso talvez. Entende. Ficou de cara emburrada por dois dias. Quase pensei em desistir do estágio. Foi um horror. Ainda faltam dois anos. Ficar de cara emburrada por causa de um brinco? Que país é este? E meu lado de artista? Quando eu nasci qual foi a surpresa dos médicos quando eu já estava de brinco. Não é moda, é tendência mundial. Uma vez na escola o diretor resolveu proibir quem usasse brinco. Os homens é lógico. No dia seguinte metade dos rapazes estava de brinco. Quem não tinha procurou furar. Quem estava sem colocou. Queriam ver ele impedir o galo de cantar, e como ele cantou. Perseguiu a gente quando a gente quis abrir um grêmio. Pudera. Nossa chapa se chamava LSD, Liga Social Democrática. Mas também que idéia, a minha. Coisa de menino. O diretor era mais falso que uma pérola de plástico, não valia o que o gato enterra. Fiquei sabendo outro dia que faleceu tem alguns anos. Coitado. Que Deus o tenha. Não sei, a gente acha tão charmoso usar brinco, eu gosto. Elas também. Esportistas, artistas, jovens, mafiosos, piratas, intelectuais, todos usam brinco, por que não? Será que ele é? É o que? Irreverente, só se for. Foram os piratas que começaram com esse negócio de só usar do lado esquerdo. Talvez por causa da espingarda, se o pirata usasse um brinco do lado direito, cada vez que o martelo da espingarda batia no cartucho, era um auê. Brinco voando com pedaço de orelha pra todos os lados. Aí eles começaram a usar do lado esquerdo que era pra não atrapalhar. Sei não, só sei que foi assim. Mas os adultos sempre precisam pegar no pé de alguma coisa. Se não é por causa de um brinco é por causa de cigarro. Se não é por causa do cigarro é por causa do brinco. Brinco pelo menos menos mal. O pior é que ele olhava para mim, e eu já sabendo que ele ia ver, era um tal de virar o rosto para o outro lado. Não sabia qual seria a reação. Previa fortemente apenas. Aí me chamou do lado esquerdo. Meu Deus e agora? Pensei com Deus e meus botões. Estava indo tudo bem. Estávamos discutindo sobre um artigo que ia sair daqui a algumas semanas. Dava para ver que ele estava animada. De repente, não mais que de repente, os céus ficaram escuros, a brisa virou, não espuma, mas tempestade. As rugas, franzidas, começaram a cair. A cabeça se ergueu um pouco mais. A boca ficou seca. Os olhos, esses nem bom falar. O tom de voz, suave, abaixou. Mas sempre com aquele espanhol sotaque forte. Um estagiário usando brinco? Pensei que ia morrer. Estava sendo crucificado, macerado e liofilizado. ‘Do pó viestes e ao pó retornarás’, pó de mim, pobre de mim. “Ele está meio zangado?”. “Não, é o jeito dele mesmo”. Menos mal. Menos mal nada. De noite tirei o brinco. Droga, vou ter que comprar um automático. Desses que sai sabendo a hora, tira sozinho. Igual aquelas roupas que de tanto a gente usar elas já vão sozinhas para o armário. Ou aqueles carros que consomem muita gasolina e quando passam na frente de um posto tem seta automática. Brinco automático. Gostei da invenção. Igual a gente suprimir nosso lado artista pra assumir o lado cientista. ‘Agora está na hora de vc ser artista’. ‘Agora está na sua vez como cientista’. E assim vai o dia inteiro. Hora de um, hora do outro. Não dá para ser os dois? Os famosos puristas. É assim e pronto. O tempo acabou de novo. É assim e pronto.

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